terça-feira, novembro 13, 2007
Imagem: Nude Reclining on a Chaise, ca 1855, do fotógrafo frances Auguste Belloc (1800-1867).
O GOSTO DA ÚLTIMA VEZ
“Quem é esta que aparece
como a alva do dia,
formosa como a lua,
pura como o sol..." (Cânticos de Salomão, 6, 10)
Luiz Alberto Machado
...a falta que Pomona me fazia ao coração, levou-me a loucuras sentimentais estabanadas. E enamorei por paixões carnais, tanto em contatos imediatos de quarto grau, quanto em devaneios exacerbados.
Foram desfilando no cenário da minha retina mulheres várias, ternas e inescrupulosas, enredeiras e pin-ups, caras-metades e linguarudas, deusas e profanas, lívidas e resolvidas.
Era Diana, a deusa latina da lua que lavava seu corpo virginal na água espumejante da fonte como Artêmis para um sujeito selenito como eu. Era Íris, a deusa do arco-íris, a raínha dos deuses; era a árabe Amália, abelha do lar; era a grega Cora, virgem; a hebraica Ana, graciosa; a latina Celestina, vinda do céu; era Cleópatra, a glória da terra; a Amanda, digna do amor; a Vênus, Afrodite, com o seu cinto bordado que tinha o poder de inspirar o amor; ou Hero, sacerdotisa de Vênus, amada por Leandro; ou Dânae da torre de bronze onde seu pai a havia aprisionado; Calíope com a poesia épica; Euterpe, com a poesia lírica; Melpômene, com a sua tragédia; Terpsícore, com a dança e o canto; Érato e sua poesia erótica; Polínia e a sacralização poética; Urânia e a astronomia; Talita e a comédia; a teia de Penélope; a solidão de Ariadne; Dafne que fora o primeiro amor de Apolo; Prócris, a amada de Céfalo; Coatlicue com o seu manto feito de serpentes entrelaçadas; ou Xochiquetzal, a deusa do amor, mentora das volúpias sexuais, protetora das prostitutas e dos hermafroditas, reinando sobre todos os prazeres terrestres e sobre as flores; Sila, a linda donzela favorita das ninfas da água, caminhando ao longo da praia à procura de um ponto tranqüilo; Shiva, a terceira pessoa da divindade hindu; Antígona, uma frágil jovem de vontade indomável; e aquelas que os tempos se ocuparam de escorrer pelas minhas mãos.
Nas minhas andanças em busca de Pomona, o magistrado Armstrong me dissera um alerta que se a mulher possuir olhos francos e vivos, ou se tiver ímpeto felino, deve fugir dela; se for do tipo que está sempre querendo que o marido vá com ela aos bailes, esteja cansado ou não, fuja enquanto for tempo; se for pouco inteligente por mais atraente que seja, dá sempre errado, além dos filhos correrem o risco de nascerem bestas quadradas; e, finalmente, se forem santas, cuidado, é muito difícil para um pecador dividir existência com uma santa.
Nisso, eis que aparece Kisagotami procurando uma semente de mostarda. Eu senti a dor do seu sofrimento. Queria salvar o filho morto procurando a semente da mostarda em casa que não tivesse morrido ninguém. O Buda assim exigira para a ressurreição. Eu chorei com ela, vez que em todas as residências choravam os mortos de suas reminiscências. Ela deixou-me tonto até que me recolhi num ambiente amigo.
Desfeito o sonho esbarro com a realidade. David saíra para fotocopiar uns textos que eu fizera, deixando-me à vontade em seu apartamento, bisbilhotando umas partituras.
Ouvi o barulho de que alguém chegara por ali. Olhei em volta, certo que seria David que retornara. Não fora. O barulho se repetia, embora ninguém aparecesse, nenhum sinal de vida.
Investigando, não havia ninguém por ali, nem no sanitário, ninguém em qualquer cômodo do apartamento, senão teria visto quem deveria ser.
Aquele bulício me incomodava, onde era? Investiguei tudo com o olhar e constatei que não havia vivalma ali.
A minha curiosidade se acentuava. Vôte! Quem roubava meus sentidos? Algum fantasma, encosto, duendes, lêmures, flibusteiros, assombração, não acreditara nisso nunca.
Depois de muita curiosidade descobri uma pequena fresta no piso de madeira e fui levado a verificar o que se passava, lembrando do tempo em que me punha por curioso menino nas fechaduras de mulheres alheias. Não, não era aqui isso.
Agachei-me e vi pelo buraco no chão: era ela, linda e faceira se desnudando, jogando suas vestes com calma, alisando seu corpo branquinho e liso.
Era ela, meu, eu que perseguia seu jeito dia a dia, me excitava a cada peça do seu vestuário arrancada, parecia um streep tease só para mim.
Logo eu que a desejava muitas e tantas vezes quando cruzávamos nas visitas imprevisíveis que fazíamos ao David, para que pudéssemos exercitar nossos instrumentos, visando maior virtuose durante a execução de nossos modestos concertos. Líamos partituras com o fito de decorá-las e executarmos com maior sentimento após a compreensão de suas notas e contornos musicais. Ele, o meu amigo, morava ali, no sótão da casa do pastor, um apartamento modesto mas acolhedor. Morava sozinho, viera de Paulo Afonso, quinhentos e tantos quilômetros daqui, para ser o pianista da igreja. Eu, um ateu convicto, ali no sótão da casa de um pastor batista.
Prendi a respiração para não ser notado, nada poderia atrapalhar aquele espetáculo exclusivo.
A mulher do pastor estava ali embaixo, nua, linda, no meu tope, cabelos negros, olhos pretos, lábios carnudos, carinha bem desenhada, corpinho roliço e sensual, pernas bem torneadas, toda uma elegância de forma combinada com sua vozinha sensual e mansa. A pele branca, lívida e casta para minha loucura, se sobressaía nas vestimentas em cores escuras e discretas, sempre se vestindo de tons sombrios, dando-lhe um ar senhorial, uma transparência de idade maior do que na verdade possuía, contudo, bem aquinhoada na composição corporal.
Vendo-a ali imaginava mil peripécias sexuais explorando sua branquitude no menir do amor. Eu bailaria com ela por imensidões infinitas, estrelas candentes, planetas inabitáveis, galáxias vindouras. Era a promessa do amor, secreto.
Ela depois desapareceu nua, não sei para onde, recompondo-me, então, para não ser flagrado ali.
Acomodei-me na cadeira, não antes, de vez em quando, voltar curioso, para a fresta aguardando seu retorno para aquele palco exclusivo e íntimo.
Não, demorou muito e David já estava de volta exigindo-me concentração na papelada. E assim ficamos na empreitada.
Certa tarde depois, eu e David estávamos ensaiando uma sonata que eu havia composto às escondidas para ela, quando o seu vulto aproximou-se de nós. Empalideci com a surpresa, o sangue sumira da minha tez. Eu nada dissera ao amigo, nunca diria, nunca revelaria nem com uma espada na goela, tá doido?
- Que bonito! -, elogiou-me, flertando meu coração, ela sem saber disso.
- Obrigado. -, agradeci meio que cheio de pernas, vermelho da febre de timidez.
Reunindo todas as forças que ainda restariam em meu ser, tentei mais algumas sílabas em sua direção e fiz convite oportuno para a apresentação da peça no próximo final de semana. Eu que ensaiara palavra por parágrafo, ordenando frases sintaticamente corretas no quengo, tudo certinho para quando ela aparecesse faceira, assim, mas, não tinha jeito, uma confusão explodia na minha cabeça, eu não sabia mais nada, tartamudeava, pisando na bola, enrolando a língua, dando nó na idéia, pára!
- É mesmo? -, respondia ela provocando-me as entranhas.
- É sim, será no teatro e melhor ainda se a senhora se fizer presente -, enrolei-me e fiz o maior esforço para concatenar as idéias, continuando: - Eu e David apresentaremos umas novas canções que compus, dentre elas, essa sonata que eu...
- Que bom, vou ver a agenda do meu marido para ver se a gente pode ir, você sabe, a gente tem culto no final de semana.
- O concerto só começa depois das vinte e uma horas, depois, claro, do culto. -, interrompi, temendo sua recusa: - Podem ir, eu esperarei ansioso por vocês.
- Tudo bem. Vou ver se dá, tá bom?
- Tá.
Sangue de Cristo tem poder! Notei lá no fundo que ela estava trêmula, não sei. Eu, pelo menos, estava por um fio. Disfarcei o máximo. David nem notara, creio.
Ela saiu e nós continuamos a ensaiar a tarde inteira, noite adentro até quase de madrugada.
Trabalhamos mais no dia seguinte, no outro, três dias depois, ela nada de aparecer, até que resolvemos descansar para o show de sábado.
Por volta das dezenove horas eu, David e os músicos, passávamos a afinação, corrigindo algumas dúvidas até acertarmos que eu faria, naquela sonata que virara balada, um momento solo. Isso, ela não me saía da cabeça.
Encerramos o ensaio geral e liberamos todos para se aprontarem.
Fui para o camarim visando relaxar, tomei um banho e deitei no divã, folheando uma revista que levara para dissipar a tensão nervosa.
A figura dela ocupava minha mente, não conseguia me desvencilhar de sua imagem.
Cochilei com um sonho, finalmente juntos e sozinhos, ninguém por perto e não dizíamos qualquer palavra. Fitávamos um ao outro, irresistivelmente. Líamos em nosso olhar que também mexera com as suas estruturas, éramos cúmplices de um idílio impossível. Ela estava mais linda que nunca e o sol iluminara a sua beleza celestial, sentindo que dos pés à cabeça, seu corpo me imantava, seu lábio me necessitava, tudo me depusera a sua disposição. Não nos tocávamos, não precisávamos, pois que nosso abraço espiritual era suficiente, comungávamos nosso deleite acima das necessidades corporais num acasalamento de sentimentos recíprocos.
Abruptamente o sonho se espatifara, era meu secretário que me retirava daquele espasmo, avisando-me que eu devia me aprontar para o início do espetáculo.
Calmamente me recompus sob a exigência de pressa, concentrei-me e abri o peito no palco. Esgoelei o tempo inteiro sem encontrar sua presença na platéia. Desfilei canções oriundas do coração. E lá para as tantas chegou o momento xis, os músicos depuseram seus instrumentos e foram para o camarim. Sozinho, fui até o piano e recitei algumas palavras sobre este amor impossível que me envolvia por dentro naquele momento. Dedilhei os acordes iniciais da balada e interpretei o meu poema de amor, entregue por inteiro.
Ao término da minha façanha os aplausos me afagaram o ego, levantei-me e fui até o proscênio onde agradeci a todos os presentes. Eita! Ela estava na terceira fila, vi-lhe, sozinha, aplaudindo e com os olhos brilhantes. Uh, ru! Aí sim, a banda retornou e continuamos o show até o seu término. Ao final atendemos bis, depois outro e encerramos as atividades numa jam session apoteótica. Fora a minha catarse.
Um bando de gente veio parabenizar pelo feito no corredor que dava para os camarins. Fotos, entrevistas, autógrafos e abraços muitos. Tudo muito efusivo. Eu não tinha nem onde me escorar com tanta receptividade, os dentes no coarador.
No meio dessa maratona eis que ela me apareceu timidamente, me lançou um olhar de grata e com um ar de quem sabia o que se sucedia comigo, leu-me a alma. Fiquei empulhado. Será que a minha canção tocara-lhe o coração? E no meio daquela multidão fez menção de falar ao meu ouvido e me beijou a face, sussurrando...
"o seu falar é muitíssimo doce;
sim, ele é totalmente desejável."
(Cântico, 5,16)
E que me amava e partiu imediatamente. O seu sussurro: - Te amo! -, nossa! Fiquei cheio de uma alegria imensurável, estava vitorioso, feliz, alcançara a graça de ouvir de seus lábios singelos uma declaração voraz. Ninguém notara a cena, acredito, havia muita gente no recinto, contudo meu ímpeto estava flagrante. Viajei minha ilusão.
No dia seguinte aquilo não me saía da cabeça, inventei uma maneira de ir até à casa do David resolver alguma pendência. O quê? Sei lá! Qualquer coisa, inventa aí, meu, qualquer propósito, vai, arruma na hora um motivo qualquer. E fui. Contornei o templo e fui ao portão lateral que dava na casa do pastor, abri a fechadura com certo barulho para que fosse notada a minha presença ali e me encaminhei ao cubículo para pegar a escada que dava para o aposento do David.
Ao passar pela porta da residência em direção à escada ela me interpelou. Que susto! Ela, justo ela! Surpresa mais que agradável. Minha cabeça rodou, rodou. Sua mão sobre o músculo do meu braço me aplacara a caminhada. Nada dissera, olhávamos um para o outro, de repente, fiz menção de beijá-la, rejeitou-me, entretanto, segurou minha mão. Eu disse...
"Arrebataste-me o coração com um dos
teus olhares; "
(Cântico, 4,9)
Olhou dos lados e me puxara até outra dependência onde se instalara a biblioteca. Disse-me...
"De noite no meu leito, busquei
o amado de minha alma!"
(Cântico, 3,1)
Lá, avidamente, me beijou, senti seus lábios, sua língua, enamorado no enleio da paixão profunda. Ela arrematou:
"...Que desfaleço de amor."
(Cântico, 5,8 )
Demoramos não sei quanto tempo até que ela se assustou e me empurrou porta afora, recompondo-me até a saída dali.
Na rua meu coração era verdadeiro espalhafato a dar cambalhotas doidas.
Liguei o carro e saí sem direção, até que divisei um bar e lá ancorei numa mesa, sozinho com meus pensamentos, ingerindo uma cerveja gelada, fumando um cigarro atrás do outro.
Passei por rabiscar um poema no guardanapo, solfejando cada verso como numa canção... e guardei ao bolso:
Ao prever o amor afinal
Em meu peito desabrochou
Toda gula da sedução
Toda opção na avidez do querer
Quando o truque do amor dominou
Foi capaz de ter emoção
Assustando o meu coração
Sem ter razão prá se defender...
Fiquei imaginando como seria possível aquilo acontecer outra vez. De novo? Claro, a sanha acesa. O pior é que não via qualquer possibilidade, já que era casada e, por sinal, muito bem casada, de vida resolvida e equilibrada, possuindo seus afazeres religiosos e, na certa, cumpriria à risca os mandamentos. Se parecia até com um casal feliz, feito Filemon e Baucis, os bem casados. Ou mesmo Adah, deus do raio e da tempestade com seu touro; ou Ishtar, deusa da fecundidade e também da guerra, com o leão e a pomba. Ou aqueles cônjuges de Hanra-roa, quando ela não quis deixar seu marido que estava leproso, acompanhando-o no leprosário onde também contraiu a terrível doença.
Não haveria espaço para mim, sabia. Morria a esperança, sabia que aquilo era impossível, jamais ela trocaria uma vida ajustada por uma aventura estabanada com um reles compositor maluco que ainda não havia resolvido nada de sua vida, ateu, perdulário, descompromissado com tudo e todos e sem direção na venta, guiado pelo devaneio, de embarcação onde o vento levar. Era trocar o certo pelo duvidoso. Eu sei, a cara do pastor não era lá das boas, não me parecia de boa feição, havia, inclusive, a minha predisposição em odiá-lo porque não cria em nada do que ele pregava, rótulo de um charlatão, a exemplo do que pensava de padres e mensageiros estúpidos que se diziam discípulos de uma mentira inventada para enganar incautos e prosperar deslavados sobre as dúvidas dos desmiolados.
Era a vida dela, isso sim. Será que eu poderia invadir com meu despudor desestabilizando tudo com o meu egoísmo? Será que eu mereceria ter aquela a quem endoidara meu coração com sua santa inocência? Era pouco provável que aquele episódio se repetisse. Teria de lutar para ter-lhe de novo. E todos os dias eu inventava o que fazer no sótão, falando alto para que me escutasse e já me desencantando pelas repetidas vezes sem sucesso.
Mais de mês se passara, eu morrendo por dentro, me matando, cumprindo a minha própria pena de ser solto, heterodoxo e poeta, inventei de viajar, avisei ao David que iria, no dia seguinte, até à capital alagoana, tentar desaparecer daquilo e me despedi.
Ao descer a escada me assustei, o pastor. Meu coração foi nos pés, será que ele descobrira alguma coisa? Será que ele iria me proibir de ir ali ou mesmo tirar alguma satisfação comigo? Que terá sido?
Fui descendo a escada de cabeça baixa, nunca trocara qualquer palavra sequer com ele e não seria agora que trocaria, justo agora que era meu algoz. Fiz apenas um aceno com a cabeça e segui meu caminho quando me chamou pelo nome.
- Pois não? -, disse-lhe.
- Você está indo para Maceió? -, perguntou-me.
- Sim, por que? -, respondi desconfiado.
- É que Idalice está precisando de resolver umas pendências minhas lá, será que você poderia dar uma carona para ela, isto é, se tiver vaga no seu carro, claro?
Puta-que-o-pariu! -, pensei comigo, estourando de alegria, esbugalhei os olhos e disse:
- Claro! Tem vaga sim.
- Então, que horas você vai?
- Vou sair cedo, umas sete e meia, tá bom?
- Idalice, Idalice! Ele vai lá pelas sete e meia, fique pronta, onde ela espera o senhor?
- Não se incomode, passo aqui e apanho.
- Oh! quanta gentileza sua!
- Nada, passo aqui sim!
- Não será incômodo?
- Que é isso? Pelo contrário, será um prazer!
- Muito grato.
- Até amanhã.
- Até amanhã!
Porra, meu! Meu coração estufou de alegria, nossa! Saí doidinho dali sem saber nem para onde ir, inventei uma viagem sem nem esperar para quê, quando já desistia daquele affair e a coisa cai do céu assim, sem mais nem menos, será obra do acaso? O acaso não existe, sim, será predestinação? Ôrra, meu, que coisa!
Saí dali e fui logo abastecer o veículo. Depois em casa arrumei as coisas que tinha por fazer, na verdade não tinha nada, inventaria qualquer coisa, o mais importante é que ela iria comigo e sozinha e se ela não quisesse ir sozinha comigo? Eu arrasto assim mesmo, digo que vou pegar algumas pessoas e depois dou umas rodadas e faço então que as outras desistiram de viajar. E assim foi, nem dormi direito, passei a noite em claro.
Às sete e meia estava eu na sua porta, ela pronta já, sozinha, me esperando. Veio até o carro, abri-lhe a porta e assentou, seguindo viagem. Nada dissera. Eu tremia, nem acreditava; As coisas faziam confusão na minha cabeça, davam reviravoltas e não conseguia concatenar as idéias. Estava perdido, completamente néscio, quando lembrei do som, empurrei um cd e a música rolou. Adivinhei: Debussy, nada mais encantador.
- Isso é lindo -, dissera ela.
- Mais linda é você! -, dissera eu.
Enrubescera e nada dissera. Pra que eu disse isso? Condenei-me. Tinha que dizer, não agüentava mais o escalpelo.
Já estávamos na BR 101, um silêncio devastador.
- Você vai para que bairro em Maceió? -, tentei abrir um diálogo depois de horas e horas de confusão na minha cabeça.
- Vou para a Jatiúca, mas não se atrapalhe por mim, pode me deixar em qualquer lugar que eu pego um táxi e vou.
- Que é isso? deixarei você lá, tranqüilamente. E a que horas você pretende voltar?
- Não se atrapalhe por mim, pode resolver suas coisas que eu volto de ônibus hoje mesmo. -, frisou rispidamente.
- Eu também volto hoje, posso passar lá e lhe apanhar.
- Não se embrome por mim, vou resolver umas coisas e volto logo -, sentenciou sem querer dar trela nem abrir espaço para a minha ousadia.
Friamente respondia e nem sequer olhava para mim, eu quase grito com tanta indiferença. E aquele beijo? Foi de graça? Não havia nada, será? Pensei já me aborrecendo com a atitude fria dela, tentando me recompor.
- Que nada, será um prazer, eu também tenho pouca coisa para fazer, aliás, para ser mais sincero, eu não tenho nada que fazer em Maceió, foi só um pretexto para lhe ver ou conseguir alguma reação sua depois daquele beijo, agora que já estamos em Ribeirão indo para Maceió, vou levá-la até lá e trazê-la de volta quando quiser, na hora que achar por bem sua conveniência, estando, portanto, meu coração e eu à sua inteira disposição. Peço desculpas por essa ardilosa situação, é que eu não agüentava mais...
Pôxa, danei-me a falar que quase não paro mais, abri o jogo, que coisa!
Agora eu quem estava avermelhado, tímido do jeito que eu sou, falando assim, ela viu, finalmente, olhou pra mim e pôs a sua mão sobre a minha.
Encostei o veículo no acostamento e fitei fundo seu jeitinho manso.
Aos poucos fui me aproximando. Senti-lhe a respiração. Encostei bem devagar meus lábios nos seus. Ela nem ofereceu resistência. Lentamente fui me aproximando, a respiração, o aroma do batom, a sua face trêmula, seus lábios carnudos, me apoderei de sua alma indefesa e fechei os olhos ante o labirinto do amor. Nos beijamos longamente.
Assustados, ficamos com a velocidade dos caminhões que passavam e nos recompomos do mergulho fundo nas águas violentas da paixão.
Agora poderíamos falar mais abertamente, ela repousou sua mão sobre a minha coxa e meu pênis já forçava para sair da calça, não havia como evitar a saliência, ela já notara, tinha certeza, assim deixei, repousei a minha mão sobre a sua, alisei; ela apertava a minha perna, pôrra, por que não coloquei meu caralho do lado direito, se ali estivesse ela estaria a mílimetros da minha glande. Mas do outro lado, que distância, essa mania de guardar a rola do lado esquerdo é estranha. O que faço?
A mão dela sobre a minha coxa, apertando-a carinhosamente e eu alisando-a com maior furor, não me continha de tanta satisfação, quando busquei seus dedos e entrelaçamos os meus nos seus, de mãos dadas prosseguimos.
Mais na frente estacionei novamente no acostamento e me agarrei aos seus cabelos, sedento, minhas mãos buliçosas contornavam seus seios, seu ventre, lambuzei-lhe a face, ela ofegante; busquei suas pernas, levantei-lhe a saia e alcancei-lhe o ventre, estava úmida, investi um dos dedos entre a calcinha e com o indicador acariciei sua vagina, quase desmaia, respirando fundo pela boca, senti seu hálito, deitei minha cabeça sobre suas pernas e beijei suas entranhas e lambi sua vulva. Desfaleceu, arrancando-me ferozmente dali. Abaixou a cabeça e ficou com a mão direita sustentando a testa como que se auto-reprovando daquilo, da minha atitude, silente, arfante, descontrolada.
Virei as chaves do veículo, debreei e continuei a viagem. Estava em chamas, tudo queimava dentro de mim.
Ela, após um bom pedaço de tempo, permaneceu imóvel, alisei sua mão esquerda que descansava agora sobre a sua coxa, acariciei e novamente entrelaçamos os dedos. Ela parecia rezar.
Trouxe-lhe então sua mão para a minha coxa e fiquei massageando sua palma, o seu braço, emborquei e toquei suas unhas, seus dedos e aos poucos a cada vez que passava a minha sobre a sua, puxava-a um pouquinho em direção ao meu ventre, aos poucos e com muito cuidado, lentamente, meu caralho ereto quase fazendo buraco na calça, pronto para desabar cueca e zíper, pulando fora doido, quando consegui, finalmente, remover sua mão até ele, atos imobilizados, apertou carinhosamente, alisou, quase morro, e assim ficamos, sozinha me bolinando, me punhetando, soltei o botão da calça, arriei o zíper até embaixo e trouxe-o de dentro para fora da cueca e sua mão afagou-o com determinação.
Ao mesmo tempo rocei-lhe as pernas, incendiei sua alma e, a certa altura da ida, divisei um motel e fiz que ia entrar.
- Podemos?
- O quê?
- Podemos parar um pouco aqui?
- O que é?
- É um lugar aprazível, ninguém por perto para que a gente possa se conhecer melhor.
- Não, por favor, tenho hora para chegar ao compromisso.
Obediente, segui em frente. Coloquei um cd de Egberto Gismonti no som, trouxe sua mão de volta às carícias anteriores e rumei para Maceió. Ouvimos entre carícias Keith Jarret, Edson Natale, Kitaro, Duofel.
Uma hora e meia depois estávamos próximos do lugar que ela ficaria e, preocupado com a volta, marquei às treze e trinta da tarde para apanhá-la e podermos almoçar. Acertamos tudo, ela me pediu que não lhe beijasse ali, se recompôs e desceu para os seus acertos pessoais.
Fiquei zanzando: Ponta Verde, Jatiuca, Mangabeiras, Pajuçara, Cruz das Almas, Jacarecica, Guaxuma, Sonho Verde, Ipioca, Riacho Doce, quase indo pelo litoral norte ao som de Djavan, de Hermeto Pascoal, o Mirante da Sereia, Ilha da C'roa, Paripueira, Barra de Santo Antonio, os poemas de Arriete Vilela, até me debruçar numa mesa dum bar da orla belíssima dali. Era como se estivesse no meio da criação de Jorge de Lima, de Graciliano Ramos, Ledo Ivo, ou num poema erótico de Marcos Farias Costa.
Um calor brabo naquelas paragens, apesar do vento da praia.
Falaram do litoral sul, Francês, Barra de São Miguel, Jequiá da Praia, o Gunga, Lagoa Azeda, Miaí, Lagoa do Pau, Pontal de Coruripe, Pontal do Peba onde o São Francisco se encontra com o Atlântico.
Lia poemas de Arriete Vilela, Ari Lins Pedrosa, Sidney Wanderley.
Uma e meia, suado que só pelo álcool ingerido, estava eu aguardando a sua chegada. Atrasou-se.
Duas e meia, uma hora depois, esbaforida chegou..
- Desculpe, foi que eu tive que pagar uma conta num banco do centro e demorei muito lá na fila, alem de ter de trazer o comprovante do pagamento para o escritório daqui, mil desculpas.
- Não precisa se desculpar. Podemos almoçar? Se não for incômodo.
- Claro que não.
- Vou escolher um restaurante ideal ou prefere um local discreto, eu mesmo precisaria tomar um banho, este calor me deixou bastante suado.
- Você é quem sabe -, disse-me.
Ora, acionei o motor e segui rumo a Jacarecica.
Lá chegando adentrei num motel e pedi nosso almoço com uma garrafa de vinho. Ela estranhou o local, olhava os quatro cantos, a cama, os vidros, os espelhos, deixei que se aclimatasse, fitando toda sua feitura grácil.
O vinho chegara, apanhei duas taças e servi, degustou com classe e, finalmente, brindamos. Ela sorriu com a minha atitude. Recitara-me, sussurrando, novamente, parte do Cântico dos Cânticos de Salomão.
"Beija-me com os beijos de tua boca."
(Cântico 1,2)
Aproximei-me com cuidado e beijei-lhe ardentemente.
Levantamos e sai conduzindo-a até a cama onde estatelou-se. Agachei, beijei-lhe os pés, as pernas, as coxas, a vulva, ela gemeu horas e horas, contorcendo-se toda e gritando. Entoei-lhe:
"Como és formosa, querida minha,
como és formosa! "
(Cântico, 4,1)
- Não aguento mais! Não aguento mais! -, gritou-me ao ouvido e prosseguiu:
"o meu amado é para mim
um sequitel de mirra,
posto entre os meus seios..."
(Cântico, 1,13)
E mais eu enfiava minha língua no seu alçapão, alcançando seu clitóris,
"manancial recluso, fonte selada."
(Cântico, 4, 12)
ela jogando a cabeça de um lado pro outro, gemendo, gritando, até que puxou-me pelos cabelos e me beijou ardentemente,
"a sua mão esquerda esteja debaixo
da minha cabeça, e a direita
me abrace..."
(Cântico, 2,6)
reabri a calça, livrei-me da cueca e introduzi-me todo em sua buceta molhada, dando-lhe estocadas violentas. Oh! que méquia!
"Às éguas dos carros de Faraó
te comparo, ó querida minha!"
(Cântico, 1,9)
- Meu amor! Meu amor! -, gritava ela: - eu te amo! Te amo!
Cheguei ao ápice, o mundo rodando num bailado frenético, faíscas, relâmpagos, girava a valsa eterna do prazer e gozamos juntos.
"Os meneios dos teus quadris são como
colares trabalhados por mãos de artista."
(Cântico, 7,1)
O oxigênio era pouco para os nossos corações disparados. Fiquei um tempão jogado em cima dela, beijando-lhe os lábios, as faces, os olhos, o pescoço, minha bimba lá dentro presa, ela apertava-me de forma de não poder retirar meu caralho de suas entranhas.
"O meu amado meteu a mão por
uma fresta, e o meu coração
se comoveu por amor dele!"
(Cântico 5,4)
Depois de um tempão, descontraída, deixou que deslizasse pro seu lado, encolhendo-se toda, esfregando-se em mim.
"O teu ventre é monte de trigo,
cercado de lírios!"
(Cântico, 7,2)
Mirávamo-nos, ela entregue à minha sanha. Passamos muito tempo assim.
Levantei-me e fui ao banho. Seguiu-me, ficando em pé na porta do box, fiscalizando a me molhar.
"Desejo muito a sua sombra
e debaixo dela me sento,
e o seu fruto é doce ao meu paladar."
(Cântico, 2,3)
Veio então de mansinho, passeando seu tato levemente por todo meu corpo, segurou firme meu caralho, esfregou-o, ensabuou-o, alisou-o, até que ficasse enrijecido novamente; de cócoras deu-lhe um beijo... mais outro... até que sua língua chegou a tocá-lo...
"os teus lábios são como um fio
de escarlate, e tua boca é formosa!"
(Cântico, 4,3)
...a glande engulida, o aguaceiro da ducha molhando-lhe, ela chupando-me. Que doçura! Ronronei:
"Mel e leite se acham debaixo da tua língua!"
(Cântico, 4,11)
Excitação total, mais rápido, aninhei meus dedos entre os seus cabelos prendendo-os mais e mais, eu louco, virando o globo ocular, já não agüentando mais sua perícia, ejaculei na sua boca vertiginosa, largando-me no seu terreno abissal. Enguliu tudo e continuou com sisifismo na felação, como se fosse um doce predileto, devaneios múltiplos, quimeras mil, loucuras extremas, ah! Ahhhh! Estava vencido, dominado, entregue, reconfortado, rendido, oh! quanta ebulição.
Por fim, concluindo o banho, almoçamos com os olhos pregados no olhar do outro. Beijamo-nos ininterruptamente, prova do amor e do carinho que nos dedicávamos.
"Quão formosa e quão aprazível és,
ó amor em delícias!"
(Cântico, 7,6)
Saímos dali, eu mais ancho que de costume, retornamos da viagem e ao chegarmos deixei-lhe em sua casa e parti para os meus aposentos.
Durante toda noite sonhei com aquele bailado inesquecível. Ela já estava toda por dentro do arcabouço do meu corpo. Ela era tudo em mim, minhas veias, meu sangue, meus pensamentos, minha vontade, meu desejo, tudo.
No dia seguinte fui visitar David com o intuito de vê-la. Ao passar pela passagem lateral de lá, notei a porta do templo aberta, entrei e olhei, lá estava sozinha, ajoelhada, rezando. Me viu e abriu um sorriso lindo.
"Vem depressa, amado meu,
faze-te semelhante ao gamo
ou ao filho da gazela,
que saltam sobre montes aromáticos!"
(Cântico, 8,l4)
Não me contive, fui até seu encontro, abracei seu corpo e beijei com fervor. Nada falamos.
"dar-te-ei ali o meu amor!"
(Cântico, 7,12)
Ali mesmo, ensandecido, levantei seu vestido negro, encostei seu corpo no púlpito e me servi.
"os teus beijos são como o bom vinho!"
(Cânticos, 7,9)
Amei demais. Ejaculei. Ainda gozando empurrou-me, fiz força para agarrá-la, rejeitou-me violentamente e tive de sair até a rua.
Havia o gosto da última vez. Nunca mais sequer dedicara qualquer palavra a mim, estava sempre com o seu marido, no sacrossanto reino do lar.
Algumas vezes o telefone tocava e quando atendia uma voz sussurrava: eu te amo! E desligava imediatamente.
Três a quatro vezes ao dia o trinado do telefone me sacudia, às vezes nem falava, ouvia só a respiração. Era ela, tinha certeza. Aproveitava o silêncio e a respiração e recitava poemas tórridos de amor, declamava loucuras mil, solicitava sua presença, exigia, intimava, enlouquecia e o sussurro no fim: eu te amo! Era ela.
Eu marcava encontros, ela não ia. Ensaiava ir buscá-la, ousava invadir sua residência e estuprá-la lá mesmo, nada, ninguém. Só o sussurro mais nada.
Sacudiu a vida em mim
Coloriu como a um jardim
Foi depressa foi sem pena
Rebuscou na cantilena
Toda fúria do que quis
Não previu todo embaraço
Veio com estardalhaço
Pra me fazer feliz.
Tão aguda, tão insana
Percebi que essa fulana
Era a deusa do meu sim. (Cantilena, música de Santanna, o cantador & letra de Luiz Alberto Machado. © Luiz Alberto Machado. Direitos reservados. In: Primeira Reunião. Recife: Bagaço, 1992).
©Luiz Alberto Machado. Direitos reservados do autor.
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